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Três anos da criminalização da homofobia

O que era e o que é ser LGBTI no Brasil

Uma análise sobre um marco histórico tardio
No bairro de São Domingos, em Niterói, a fachada do casarão – parecido com tantos outros da região – se destaca pelos grafites que preenchem seus muros brancos com as mais variadas cores, um prólogo do conceito de pluralidade do ambiente. Na primeira visita, na tarde de quinta-feira, deparo-me com a imagem grafitada do rosto do homem que dá nome ao espaço. Seu olhar recepciona os que atravessam o portão. Subo os degraus da escada de concreto sob o sol das quatro da tarde. O muro ao lado da escada é coberto por uma pintura de arco-íris. Sou recebido por um funcionário chamado Carlos, um homem na casa dos seus 60 anos, de cabelos grisalhos. Ele pede que eu aguarde numa sala enquanto ele tenta conseguir uma entrevista com alguns dos funcionários responsáveis pelo acompanhamento da população LGBTI+.
Este é o Centro de Cidadania LGBTI Paulo Gustavo, como anuncia a placa aos que sobem a escada. Foi inaugurado em 17 de maio de 2021. No espaço-tempo, há um lapso de 13 dias entre a homenagem e o homenageado, que falecera no dia 4 daquele mês, vítima de Covid-19. Na placa branca, além do nome e da data de inauguração, há o seguinte trecho: “Humorista, ator, diretor, roteirista, apresentador, morador, grande admirador e entusiasta de Niterói, trouxe risos e alegria ao povo brasileiro com a sua arte. Grande defensor da causa LGBTI, com seu trabalho e seu exemplo de vida foi inspiração para muitos na luta contra a LGBTIfobia”. 

Na sala, aguardo num sofá de couro preto coberto com o manto arco-íris, ao lado de uma pequena estante decorada com fitas brancas, rosas e azuis que carrega uma placa escrita ‘Biblioteca Solidária’. Carlos faz a intermediação e consegue os dois primeiros contatos para serem entrevistados. A advogada e sua estagiária saem da porta em frente ao sofá. Cruzamos então o pátio em direção ao outro lado do casarão. 
O centro é composto por salas e salões de tetos altos e assoalhos de madeira. Das janelas, é possível vislumbrar os telhados das casas vizinhas. As duas mulheres me conduzem ao salão cujo nome oficial é sala de atendimento. As paredes do lugar são ornamentadas por cartazes em tons pastéis de João Nery, Jéssica Beyonce, Yonne Karr, Benjamin Braga, Shanaya Vitória, Gery Paiva e Laylla Monteiro, todos pertencentes ao T da sigla. Também há duas bandeiras da causa, uma pendurada em uma das janelas e a outra sobre a mesa em que conversamos.
Os raios solares em tons dourados iluminam as faces e os cabelos das entrevistadas, a advogada Cristiane Maciel e a estagiária de direito Isabela Lessa. As duas atuam no programa estadual Rio sem LGBTIfobia, do qual o centro é parte integrante. Cristiane conta que, atualmente, são 13 equipamentos do programa espalhados pelo estado do Rio de Janeiro e traça um panorama histórico precedente à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de 13 de junho de 2019, que equiparou os crimes de homofobia e transfobia aos de racismo: “Desde 1830, quando foi abolida a questão da Sodoma, Gomorra, no que se fala sobre relação homossexual, isso deixou de ser crime estabelecido por lei. Só que, desde esse momento até os dias atuais, não há nenhuma lei específica. Falo da lei ordinária, que pode ser complementada. A gente tem a lei de homofobia equiparada ao crime de racismo para compor uma situação de violência que é muito aclamada, então tem uma equiparação. Mas se torna difícil aplicar o crime de homofobia porque a lei nem se preocupou em dizer o que é a homofobia e como ela é caracterizada. Não era inserido no registro de ocorrência o motivo presumido ‘homofobia’. Era classificado como injúria. Assim estava especificado ali qualquer situação envolvendo atos homofóbicos. Isso permeia até hoje”.

A percepção do que é ou não lgbtfobia torna-se um entrave para a quantificação do crime. Ao ir à delegacia prestar queixa contra esse ato, o integrante da comunidade depara-se com a naturalização dessas ofensas em estado bruto. O homossexual que queira denunciar alguém que o tenha chamado de “viadinho” encontra, do outro lado do sistema, a não identificação do ato criminoso, pois esta é uma forma de expressão habitual. Por prestação de contas, a denúncia é taxada como injúria, considerada menos grave que crimes de ódio e relativamente mais fácil de lidar, até mesmo pelo déficit de dados sobre a lgtbfobia. Um círculo vicioso provocado pelo apagão das estatísticas. A lgbtfobia ao quadrado.
Cristiane compara as políticas para LGBTI+ e para mulheres, relatando que o diferencial da segunda é a análise de dados sobre as demandas desse outro grupo minoritário. A situação do gênero feminino acaba por ser um contrassenso, pois, em números, mulheres são a maioria da população brasileira (51,7%). O termo ‘minoria’ é referente à descriminação no processo de socialização, um nome que abriga as pessoas que não conseguem chegar ao poder, ou que não o deveriam fazer. A advogada reitera o seu posicionamento: “O centro da questão de criminalização da homofobia é o motivo presumido que não existe, então não se cria estatística para isso. Por exemplo, no caso da a política para mulheres, há números sobre feminicídio, violência familiar. A lei Maria da Penha mudou. Hoje, a mulher transsexual pode fazer a medida protetiva online, porque tem toda uma aclamação envolvendo a questão do feminicído, da mulher, do gênero feminino. Para o crime de homofobia ainda não se tem. Apesar de ser falado, de ter reportagem, não se tem estatísticas concretas de crime de homofobia, e esses dados vêm pelos registros de ocorrência”.

O Anuário de Segurança Pública indica aumento de 88% de estupros de pessoas LGBTI+ entre os anos de 2020 e 2021. O monitoramento deficitário contribuiu para a alta dos casos.

Os dados que abrangem a comunidade são em sua maioria produzidos por organizações da sociedade civil. Recentemente, por decisão da Justiça Federal do Acre, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) teria de incluir no questionário do Censo 2022 perguntas acerca de orientação sexual e identidade de gênero. Em 9 de junho, o IBGE recorreu desta decisão alegando falta de metodologia adequada. O instituto também, pela primeira vez em sua história, veio a divulgar em maio deste ano a quantidade de brasileiros declarados homo ou bissexuais: 2,9 milhões, equivalentes a 1,8% da população brasileira. No final de junho, o Anuário de Segurança Pública indicou aumento de 88% de estupros de pessoas LGBTI+ entre os anos de 2020 e 2021, destacando que o monitoramento deficitário contribuiu para o aumento dos casos.

O que levou Isabela ao estágio no centro foi a motivação familiar. A estudante de Direito frequentava com sua família uma igreja evangélica tradicional, e presenciou o que ocorrera com sua prima: “Desde cedo nós vemos violências acontecendo e sendo normalizadas ao nosso redor. Tenho uma prima, que é lésbica, que foi expulsa da Igreja. Ela era uma líder dos adolescentes lá e falaram ‘Não vai dar. Se você for assim não vai ter como’. O meu próprio irmão também é parte da sigla, e é uma coisa mais escondida porque igreja, né. É muito triste você crescer num ambiente assim e perceber a violência de gênero de uma forma muito peculiar num ambiente religioso”. 
No dia em que soube da oportunidade de estágio no Centro de Cidadania, Isabela entrou em conflito com sua tia, que utilizava argumentos religiosos para condenar a decisão da sobrinha: “Ela começou a falar que eu ia pro inferno, que há perseguição contra cristãos no Brasil. A minha prima no grupo, e a mãe dela falando isso”. A tentativa de transformação das atitudes LGBTIfóbicas em mera opinião pessoal é um ponto relembrado por ela ao explorar o contexto  familiar: “A namorada da minha prima não entra na casa da minha tia. É nesse nível. Não é uma violência direta, do tipo ‘vou te expulsar de casa’, é silenciosa, e cínica”. 
Cristiane e Isabela são duas mulheres cis hétero. Cristiane explica que a participação delas é parte do movimento híbrido, que preza a coletividade e a inserção de pessoas para a causa, como familiares de pessoas LGBTI+, por exemplo. Cristiane vira-se para a esquerda, olha para Isabela e conta o exemplo da estagiária: “A Isa é uma pessoa cis hétero, mas se o movimento híbrido não acontecesse, a gente também não tomaria parte dessa violência que é cometida na família. Aí ela vai para o campo do Direito, onde atua como multiplicadora de tudo o que ela aprendeu aqui, e assim o movimento híbrido trabalha”.
Sobre o movimento híbrido e a luta coletiva, Isabela destaca a importância de lembrar as interseccionalidades das diferentes opressões: “Entender que opressão de gênero e opressão contra LGBTI+ tem a ver com controle de corpos. As mulheres não podem abortar, e, antigamente, não podia o casamento homoafetivo. Isso é controle de corpos. É a manutenção da família heterossexual, que reproduz, que cria uma nova classe trabalhadora para se explorada igual. Tudo tem uma raiz de manutenção e controle desse sistema de reprodução social da vida. E, no final, está todo mundo junto na mesma luta.”

Atendimento psicossocial

Retorno ao Centro de Cidadania LGBTI Paulo Gustavo na quarta-feira seguinte. Encontro Calebe Fita, psicólogo da entidade e integrante da sigla, que me conduz ao mesmo salão da primeira conversa. As janelas dessa vez estão abertas. Os sons da rua são mais intensos. Calebe conta que sua escuta é psicanalítica, mas sua atuação, psicossocial. Ele acolhe e investiga a demanda do usuário, encaminhando-o para meios internos (parte jurídica e social) e externos (órgãos públicos competentes). Também faz todo o acompanhamento do caso, prezando pelos direitos da vítima: “…Se ele teve o mínimo de justiça que ele deveria ter. Falar mínimo também é uma violência. Por que que é o mínimo e não o básico? Aí a gente entra numa filosofia de direitos”.
Calebe diz que a instauração da criminalização da lgbtfobia foi uma forma taxativa de mostrar que houve algum avanço, porém tardio. E que pouca coisa mudou após a instauração da lei: “Teve mudanças de consciência, mas não acredito que isso tenha mexido muito nas variáveis de resultado, por exemplo. Todo ano o programa faz uma planilha de índice de violência contra LGBTI+, e sempre os números estão muito altos, principalmente contra pessoas trans. Então, essa homofobia é equiparada até que ponto?”.

Todo ano o programa faz uma planilha de índice de violência contra LGBTI+, e sempre os números estão muito altos, principalmente contra pessoas trans.
Calebe Fita, psicólogo do Centro de Cidadania LGBTI Paulo Gustavo

O imaginário coletivo sobre o que é agressão e o que é a LGBTIfobia limita-se aos atos de agressão física ou verbal. Chamar um transsexual por um nome ou pronome na qual ele não se identifica é um exemplo de agressão aos direitos daquele indivíduo, e isso acaba passando despercebido. O psicólogo analisa essa problemática: “A representação social quando a gente pensa em crime de homofobia, ou crime de LGBTIfobia, é uma pessoa sendo espancada, ou sendo xingada. Mas há um núcleo por trás que não é visível. A justiça hoje consegue intervir nesse núcleo? Não, porque a justiça ouve isso através de escuta, e nem sempre há escuta. Aqui é um lugar que escutamos todas as violências sofridas, mas geralmente a gente vê na mídia, em trabalhos científicos ou na pesquisa  a parte mais prática, que é espancamento, agressão verbal ou uma violência que interpassa sexualidade e gênero, como a racial e religiosa”.

Por aceitação social, integrantes da população LGBTI+ se submetem a enterrar o seu verdadeiro ‘eu’ dentro de seus lugares mais profundos. Desde o início da percepção pessoal de que o indivíduo integra essa comunidade, o seu processo de construção tende a aderir a coisas mais socialmente aceitáveis de acordo com sua respectiva sexualidade e expressão de gênero. Esta realidade culmina no processo de deterioração da saúde mental dessas pessoas.
Quanto à personalidade e aos processos sociais que induzem aos problemas psíquicos, Calebe questiona a culpa que a própria comunidade recebe por isso: “Muitas pessoas não são enquadradas, e não querem se enquadrar. Isso gera sofrimento psíquico. Outras se enquadram, mas deixam de ser um pouco si mesmas, o que também gera sofrimento psíquico. Quantos complementos sociais geram sofrimento para pessoas que não têm problemas sociais, de personalidade. A responsabilidade dessa dor recai sobre a comunidade LGBTI+. E a comunidade que aponta, que acusa, discrimina e recusa? Ela tem sofrimento psíquico? Já tenho cinco anos de atuação prática na Psicologia. Nunca atendi uma pessoa que me procurou porque é homofóbica”. 
Ele conta sua própria experiência e trajetória enquanto homem homossexual: “Desde criança, eu sempre me identifiquei como um homem cis com atração por outro homem cis.  Quando se é criança, isso nem sempre é direcionado pro lado sexual ou afetivo. É só uma percepção mais fantasiosa. Agora, quando eu fui amadurecendo um pouco mais, na pré-adolescência mesmo eu já ouvia coisas como ‘isso é postura de viadinho’, ‘não pode cruzar a perna’, ‘essa roupa é muito delicada’… Era uma coisa muito silenciosa porque eu nunca cheguei e falei ‘sou gay’, mas um dia cheguei e falei ‘estou namorando um menino’. A reação da minha mãe foi a de alguém que já sabia. O meu pai não aceitou, e fui expulso de casa. Fui morar com minha avó. Nunca minha família tocou muito no assunto, de conversar e tentar entender”.

Finalizo a entrevista. Refazemos o caminho de volta à entrada. Calebe retorna ao seu posto de trabalho. Desço as escadas, acompanhado as sete cores do arco-íris pintadas sobre o muro da lateral, e, na saída, esbarro novamente com os olhos de Paulo Gustavo, que observa a todos que entram e saem do centro. Um olhar forte, fixo, mas acolhedor, empático. O olhar de um guardião dos LGBTI+.   
Três anos da criminalização da homofobia
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